Mörk Borg e a pós-OSR



O vento sopra do oeste.
Das terras despedaçadas.
A decomposição o cavalga,
E o fedor de sangue.
Andarilho amaldiçoado,
Você viajará para lá?


Finalmente pude colocar minhas mãos nesta obra divisora de águas e de opiniões, e ápice do movimento Artpunk no RPG. Inigualável porém imitado por um sem número de cópias; uma inovação da estética como elemento primário em um produto de RPG (como diria um velho roqueiro: “nunca deixarei a música sobrepor a minha estética”), com regras simples e velhas conhecidas de jogadores de D&D (com algumas alterações mecânicas para deixar o jogo mais simples e moderno). Seja amado ou odiado, Mörk Borg é uma influência para as novas gerações de RPG. Inclusive fora da bolha old-school. Já vi muita gente que não gosta de old-school mas que por alguma razão gosta de mörk borg (não entendo, mas é a realidade).

A começar pelo principal, a estética, mörk borg tenta passar (e em certa medida consegue) uma imagem de rpg sombrio, das trevas, diabólico (um álbum de doom metal em forma de jogo, como ele mesmo se intitula), mas ao mesmo tempo tem aquele sentimento de não se levar tão a sério. Os personagens do jogo são uma mistura de warhammer fantasy (grim dark) com desenhos de crianças que teriam seus pais chamados para uma reunião na escola. Tudo embalado com um uso excepcional de arte de domínio público e mais de cem fontes em um layout que grita a cada página (alguns gritos são gulturais, outros podem ser apenas guitarras distorcidas e sombrias). Retomando a ideia do Pete Townshend, mörk borg deixa a estética assumir o controle em detrimento da apresentação de suas próprias regras. Ele explica como esse mundo funciona não através de palavras, mas de gritos transpirados pelo design gráfico. É realmente um doom metal em formato de jogo.

O que é seu atributo principal, também é sua maior debilidade. A apresentação de regras acaba sendo deixada de lado, e a usabilidade do livro em mesa deixa a desejar por conta da estética, porém, sendo um jogo minimalista, todas suas principais regras podem ser encontradas na guarda do livro, além de recursos para o mestre. Então esse problema não é bem um problema de verdade. A experiência mörk borg tem duas etapas. A leitura, onde você senta com o livro físico e se deixa inebriar pela potência gráfica e pela escrita densa; a segunda experiência (jogar) é um pouco mais sóbria, e para ela o uso do livro é menos importante, apenas suas guardas são o suficiente.

O sistema de regras não tem nada de inovador. É o bom e velho D&D, com algumas alterações. Apenas jogadores jogam dados para ataque e defesa; redução da quantidade de atributos; uso de armaduras como redutores de dano; e uma magia instantânea e perigosa. Ah, os personagens não têm classes (apenas opcionalmente).

Em cima dessas alterações, Pelle Neilsson desenvolveu sua visão de D&D para criar esse mundo grim dark pré-apocalíptico, onde os aventureiros são o pior tipo de gente, que apenas sobrevive e tenta lucrar em um mundo sombrio, onírico, em que todos de uma maneira ou de outra esperam pelo fim de tudo. O livro tem várias tabelas e regras opcionais de customização de personagens, principalmente no que concerne à backgrounds, para dar vida ao cenário.

Ao iniciar uma campanha de jogo, se joga no calendário de Nechrubel, uma espécie de escritura profética em forma de salmos satânicos retirados diretamente das pragas do Egito, que servem como passos rumo ao apocalipse. Isso traz urgência ao jogo, e imprime o sentimento de fim do mundo de forma contundente.

Salmo V
5:1 O lago e o riacho escurecerão e a água tornar-se-á alcatrão. 

O cenário é descrito em breves palavras, traduzidas para o inglês por Patrick Stuart (Veins of the earth, Deep Carbon Observatory), então espere por uma prosa bastante poética, numa veia pós-moderna, que combina com a estética artpunk do conjunto da obra. Somos apresentados ao mundo através de profecias apocalípticas, da religião opressora, da geografia insólita e dos monarcas psicóticos e inumanos. O próprio mapa não indica distâncias: nesse mundo as distâncias não funcionam como antes. O caminho que se faz hoje pode não ser o mesmo amanhã. Há uma sensação de desespero, de pesadelo lúcido.

E aqui a influência da OSR brilha na apresentação da lore através de tabelas. É no uso delas que o mundo de mörk borg vai ganhando sua não-vida, imprimindo sua estética de condenação e ruína inescapável. Tabelas de tesouros, pilhagem de cadáveres, tempo (sempre frio e sombrio, não há sol no fim do mundo), além de outros elementos randômicos, servem para criar na mente do mestre sua visão de mundo.

Pós-OSR e o afastamento dos fundamentos de design do D&D old-school

Um ponto importante a se levar em consideração é que, apesar de ter elementos fundamentais do jogo old-school, como moral e reação, o jogo carece de regras e procedimentos para um jogo no estilo clássico. Dungeoncrawl, hexcrawl, nada disso é abordado pelas regras, que seguem uma linha minimalista (rules light, heavy in everything else). Isso acabou influenciando negativamente toda uma produção independente que bebeu nessa fonte. Pessoas que não entenderam o funcionamento do D&D e têm produzido módulos de aventuras que pecam em questões fundamentais. Claro, mörk borg não é o único responsável por isso, ele é também parte desse processo de afastamento das bases fundamentais que a cena pós-OSR tem sofrido.

Isso significa que esse é um jogo que vai rodar muito bem na mesa de um mestre que tenha esses conhecimentos, mas provavelmente cairá no narrativismo na mão de um mestre que ainda não tenha essas ferramentas à mão.

Ainda assim, a aventura que vem como bônus no fim do livro é bem projetada, apesar de simplória, e tem elementos importantes do dungeoncrawl, como encontros aleatórios, armadilhas, antecipação, em um layout bem organizado para facilitar a vida do mestre. Mörk Borg é um bom jogo, e sua influência é inegável, para o bem ou para o mal. Assim como Tolkien renovou a fantasia moderna com o Senhor dos Anéis e um monte de coisa medíocre foi feita em cima disso, em uma esfera de menor importância mörk borg fez o mesmo na cena old-school de RPG. O que nos resta é escavar nas profundezas da mediocridade para encontrar o ouro que ainda resta e continua sendo produzido.

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